CRÔNICA: TODO DIA É DIA DE DOMINGO POR VALÉRIA VICTORINO VALLE
Todo domingo é assim. Até
hoje, aos cinquenta anos, ainda acordo com lembranças da minha meninice. Gosto
de reviver esses momentos de luta e amor . Nesses tempos de maturidade sem a
companhia de muitas pessoas amadas e o dinheiro para compras e diversão,
lembrar das brincadeiras nas poças de lama, as escorregadeiras nas enxurradas,
a bola de gude, a boneca de sabuco de milho, a finca, correr atrás das carroças,
jogar pião, pique pega na chuva, cantigas de roda, bolhas de sabão, nadar no
córrego, é, no mínimo delicioso.
Morávamos num bairro de terra
avermelhada e bem distante do centro da cidade. No nosso barracão, cercado da
plantio de milho, de feijão e de mandioca no nosso lote invadido e no lote do
vizinho amigo, sentia-se o cheiro do café torrado e passado na hora. Eu corria
para a rabeira do fogão a lenha para receber das mãos do velho meu avô a caneca
de esmalte, cheia de café gostoso feito por ele. Eu tomava todo o café
escutando o rádio, suas histórias e suas risadas altas e gostosas.
Sempre fui uma filha alegre,
prestativa e educada. Naquela época havia falta de tudo, menos amor. A vida era
difícil, parecia um porco espinho, valia tudo para facilitar o custo de viver:
plantar couve, alface, cebolinha e salsa, chazinhos de erva doce e erva
cidreira, criar galinhas e porcos, plantar pé de jaca, pé de manga, bananeiras
e goiaba. As mudas eram cedidas por nossos vizinho e parentes, sempre cúmplices
das dificuldades financeiras. Valia também carregar pesados fardos de lenha,
buscados nas roças para cozinhar o que plantávamos, ganhávamos e para o pouco
que conseguíamos comprar com o salário minguado do meu pai. Mas tudo parecia
mais bonito e mais fácil, quando íamos ver de perto as margaridas, os jasmins e
os gerânios do quintal, cuidados por nossa irmã caçula, corajosa menina presa a
cadeira de rodas. Nem todas as escadas foram feitas para brincar... O acidente
deixou marcas físicas dolorosas, mas não impede de florescer no nosso mundo
familiar e lutar para ser feliz.
Minha mãe me acorda cedo, já
que sou a mais velha dos seis filhos, e agora que meu pai se foi, arrastado por
sofrimento, dor e lágrimas com um câncer, silencioso, lento e impiedoso. Ela me
sacode para ir a cooperativa e ajudá-la a carregar os legumes e frutas de
refugo para o comércio. As caixas eram pesadas, mas conseguíamos grande parte
de nosso sustento dos alimentos ali ganhados. Ela também caía na labuta toda
sorridente para virar dinheiro para roupas e calçados dos meus irmãos: fazia
biscoitos, bolos, doces, broas pra vender, e ainda vendíamos ovos caipira das
galinhas criadas em nosso cercado.
Antes de sair para cooperativa
ou para a venda das iguarias feitas por mamãe, já podia sentir o cheiro do
franguinho caipira na panela de ferro e ouvir a moda de viola no rádio. Era o
vovô. Sempre preocupado comigo, a netinha mais velha e esperta, que saía feliz
para o mundo lá fora, iluminado pelo Sol e pelo céu, construído entre o cheiro
do mato e da poeira vermelha. Eita mundo lindo, sempre cercado pela presença
maravilhosa de Deus em nossas vidas.
E assim, alinhada pelo destino
e protegida por Deus, eu, a moleca apelidada de Pretinha pelo vovô, saía de
casa entre o olhar carinhoso dele, a doçura da mamãe e o abano das pequenas
mãozinhas dos meus irmãos, sempre gritando alto pelas ruas os meus bordões:
- Olha o bolo e a broa, gente
boa!
- Compra um ovinho e amanhã
você ganhará um pintinho.
- Olha o doce! Só paga oito e
leva o biscoito.
A vizinhança sorridente e até
os desconhecidos se aglomeravam para comprar. Não sei se pelas gostosuras de
mamãe, se por consideração ao vovô e a minha família, ou para se livrarem das
travessuras dos meus gritos que insistem, persistem e resistem:
- Olha quem chegou! Olha eu aqui! De novo com o o ovo! Compra um ovinho nesse dominguinho.
Autoria de: Profª e escritora Valéria
Victorino Valle, Presidente da Academia Anapolina de letras.
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