CRÔNICA: [SEM TÍTULO] POR VALÉRIA VICTORINO VALLE
Na minha época ainda é
assim... Vigiamos o deus do relógio: o Senhor Tempo. Esse titã incontrolável é
um eterno compositor de momentos que nos desafia a vencê-lo todos os dias para
que haja o amanhã. Imponderável.
Não há lugar melhor para matar
o tempo e desafiar a nossa paciência do que aguardar um atendimento médico
marcado na longa lista de um hospital público. Estou plantada na recepção e
assisto a um corre-corre persistente e tão incessante nos corredores que quase
me esqueço porque estou aqui. Atordoamento.
A pressa e a urgência se
apoderaram das pessoas que se acotovelam em busca do olhar e da voz da
atendente dividida entre as pessoas no balcão, os telefones, o computador e os
formulários. Não há cadeiras suficientes para todos, muito menos leitos e
médicos, e o cheiro de gente nervosa, de doença e de morte espalham-se por
muitos lados e invadem o meu nariz. Desconforto.
A eternidade da espera parece
bater também na minha hora. A tão necessária consulta foi marcada há dois meses
para a data de hoje, às nove horas e já são onze e meia (Passa do meio-dia, diz
meu estômago), uma longa espera. Impaciência.
Como posso pensar em uma
deliciosa refeição nesse aroma de hospital e velório? Olho para a parede e
confirmo o horário, quase meio-dia. Queria abrir a porta para o dia passar. Por
um momento esqueço a fome e penso que é uma insensatez deixar um relógio
exposto daquela maneira a fim de que todos possam lamentar e testemunhar os
eternos atrasos no atendimento hospitalar. Incoerência.
Encostada na vidraça, tentando
ficar calma entre os transeuntes dessa avenida tão movimentada, ironicamente nomeada
por mim de Refúgio da Esperança, alivio-me que nada é para sempre. Mas o tempo
não perde tempo, e entre gemidos e gritos dos doentes invisíveis da sociedade,
pessoas acopladas em índices e estatísticas, presencio o cumprimento de quem
chega e a despedida de quem não sai. Comparo o bater lento do relógio ao baixo
choro do pequeno garoto que sofre o momento de só ida da velha avó, ali mesmo
na recepção do hospital. Não deu tempo... É a insipidez da desesperança. Anseio
pela chamada do meu nome, porém não ecoa nenhum som familiar que me levasse
para longe daquele lugar. Desassossego.
Digo a mim mesma: Tudo há seu
tempo. Acredito que o tal relógio deixa as pessoas mais apreensivas e
hipnotizadas, pois não consegui tirar os olhos dele desde o momento em que aqui
cheguei. Observo no objeto e na Vida o tempo passa e não espera ninguém. Sinto
o corpo entorpecido, as pernas inertes e o cérebro confuso, mas consigo ver que
o tempo escoa e arrasta com ele as dores de poucos e a resistência de muitos
naquele ambiente: a saúde viaja com o tempo, e esse possuidor de morte e vida é
o mesmo para todos. Desalento.
Consolo-me: Sempre há
contratempo. E a tempo o relógio conseguiu me encantar durante os muitos
minutos no hospital. Voltei a olhá-lo... É compulsivo e viajante. Agora me
desfaço das preocupações com o meu atendimento e da compaixão que floresce
pelos outros. Concentro-me entre um gesto qualquer do ponteiro e o movimento
dos corpos doentes empurrados de um lado para outro. O único som audível era o
tic do relógio, as pessoas não tinham expressões, moviam os lábios, mas estavam
mudas. Creio que meu atestado de loucura foi validado nesse momento. Desespero.
O relógio parece dissolver-se
e entranhar-se na tinta verde clara da parede e confundir-se com os tijolos. Simplesmente
incrível observar o caos organizado e construído pelo tempo, esse grande
pedreiro da humanidade. As pessoas atordoadas ainda perambulam em círculos pelo
hospital, sem atendimento, os braços zumbiando e murmuram palavras
incompreensíveis. Angústia.
Desconstruído amarguradamente
pelo balançar da transitoriedade, percebo que o tempo se renova numa concepção
paradoxalmente cíclica e linear criando o flexível, o instável e o
imprevisível. É a contradição de reclamar da espera com esperança. Temperança.
Libertando-me daquela
insanidade, como um rebento a gritar por mim, ouço a voz da atendente que chama
o meu nome para o atendimento médico. Reajo com rapidez, busco o meu tempo de
socorro e a homeostase, pois o tempo não passa duas vezes no mesmo lugar.
Autoria de: Profª e escritora Valéria
Victorino Valle, Presidente da Academia Anapolina de letras.
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